“Foram poucos os segundos que fizeram minha vida mudar completamente. Estava grávida de quatro meses e faria o primeiro ultrassom. Lembro-me das primeiras imagens, do bebê pulando loucamente na minha barriga, quando nem sentia os movimentos dele. O médico começou o exame e logo anunciou que meu palpite sobre o sexo do bebê estava certo: era uma menina, Sophia. Estava tão emocionada que demorei a perceber o espanto do médico analisando o cérebro da minha filha. Quando perguntei o que era, ele disse: ‘parece que tem um ossinho a mais aqui’. Nenhuma outra resposta ele me deu. Esperei no laboratório pelo resultado do exame. No documento, o médico anotou o que provavelmente não teve coragem para me dizer. Sophia tinha microcefalia.
Não sabia o que era microcefalia nem como mudaria brutalmente minha história. Estava com 18 anos, não planejei engravidar nem mudar para a casa dos pais do meu namorado – o que aconteceu no início da gravidez. Saí do exame e fui trabalhar. Incapaz de esconder meu sofrimento, minha chefe disse para eu tirar o dia de folga e me deu dinheiro para fazer um ultrassom morfológico com um especialista em imagem. Como não tenho plano de saúde e a fila do Sistema Único de Saúde (SUS) demoraria muito, aceitei o presente. Marquei o exame para o dia seguinte.
Ao novo médico não faltaram respostas, mas sutileza. Ele olhou meu prontuário antes de começar o ultrassom. Nunca vou esquecer aquelas imagens. Minha filha tinha microcefalia, ele confirmou. E o ‘ossinho’ a mais era encefalocele, um problema grave, uma expansão do cérebro por aberturas no crânio. O médico disse para eu não esperar nada da minha filha: ela morreria no útero ou no parto – no máximo, viveria por poucas horas. Todos os meus sonhos para Sophia não aconteceriam.
Para evitar maus pensamentos, preferi trabalhar 100% do tempo a ficar em casa – nem fazia hora do almoço. Quanto mais pensava, mais tinha que imaginar um novo futuro dela, e tudo o que diziam era ruim. Nem lembro direito da minha barriga crescer. A obstetra do posto de saúde me encaminhou para um tratamento psicológico porque a gestação era de alto risco. Nas consultas, só eu falava, o que me incomodou bastante. Desisti da terapia.
A cesárea foi marcada para 28 de julho, quando completei 40 semanas e cinco dias (uma gestação normal pode ir até 42 semanas). Como pediram, cheguei ao hospital às 7h, mas não havia vaga na maternidade. Esperei até às 21h para entrar no centro cirúrgico. Durante esse tempo, a equipe médica – a mesma que me acompanhou pelos nove meses –, insistiu para Sophia nascer de parto normal, quando todos sabíamos que ela não sobreviveria. Antes da anestesia, o médico disse: ‘você sabe que sua filha não vai sobreviver, não é?’. Meu corpo tremeu inteiro diante da morte da minha filha. Daí, o mesmo médico brigou comigo porque o anestesista não conseguia aplicar a injeção porque eu me mexia demais.
Não vi minha filha ao nascer. Acordei horas depois num quarto com outras mães com seus filhos no colo. Foi bem difícil assistir àquelas cenas, sozinha. Apenas no dia seguinte pude vê-la, na incubadora. Parte da cabeça dela estava coberta com uma compressa. Ainda assim, era possível ver parte da massa cefálica. Foi desesperador. Precisei ser socorrida. Em casos como o da Sophia, uma cirurgia cerebral precisa ser realizada logo após o nascimento. Por algum motivo que não souberam explicar, eu e Sophia permanecemos duas semanas na maternidade até a vaga para a cirurgia surgir em outro hospital. Minha irmã foi mãe naquela mesma maternidade. Como eu, também teve uma menina. Na alta, deram a ela um certificado de nascimento da bebê com uma foto, o resultado do teste da orelhinha, a carteira de vacinação preenchida e o teste do pezinho. Da Sophia, entregaram uma tomografia do cérebro e a carteira de vacinação com o nome dela, sem anotação alguma. Ali, minha filha não existiu.
Chegamos ao novo hospital de ambulância. O médico do pronto-socorro, que faz a autorização da entrada de novos pacientes, era o mesmo que dava alta. Ficamos na sala da sutura temporariamente. Lembro que uma enfermeira perguntou ao médico porque não mandavam a gente embora, porque o caso da minha filha ‘não tinha jeito’. Demorou, mas fomos liberadas para a UTI. Moro no Grajaú, zona sul de São Paulo, e minha filha foi transferida para uma UTI na zona leste da cidade. No começo, tinha ajuda de muita gente para chegar ao hospital. Depois, a vida das pessoas foi seguindo, enquanto a minha permanecia na UTI. Recém-operada da cesárea, eu pegava duas – por vezes três – conduções para chegar. Sem trânsito, levava quatro horas. Por isso não é exagero dizer que morei no hospital por muitos dias, dormindo e comendo quando era possível.
Nunca pude fotografar minha filha. Na UTI, não permitiram que levasse o celular pelo risco de infecção aos bebês. Um dia, uma das mães da UTI me chamou para conversar. Ela disse que quando eu saía para comer alguma coisa, os enfermeiros chamavam outras mães para ver minha filha e tirar foto sem a minha permissão. No primeiro hospital fizeram isso também. O que minha filha era para eles?
O cirurgião, dias depois, falou que a única chance era operar Sophia e retirar a massa cefálica com menos atividade que não cabia na cabeça dela. Sem a operação, o risco de infecção era grande e ela não resistiria. Aceitei. A primeira vez que ouvi o choro da minha filha foi quando os enfermeiros tentaram encontrar uma veia no braço dela para a cirurgia. Foram tantas as picadas que ela não aguentou a dor e gritou. A cirurgia começou às 8h e terminou às 16h. O neurologista repetiu, seis vezes, que ela jamais iria andar. Era um palpite, ele disse.
Sophia se recuperou bem, mas ainda não conseguia se alimentar sozinha. Desde o nascimento, ela recebia alimentação parenteral (uma sonda que passa pelo nariz e leva alimento para o organismo). Mas com esse equipamento ela não teria alta. A solução, a que resisti bastante, era fazer uma gastrostomia (cirurgia para fixar uma sonda alimentar). A alta estava programada para o dia 30 de setembro, depois de três meses intermináveis de internação. No dia, o médico, que sabia da minha expectativa sobre a alta, não apareceu. Senti uma raiva sem fim. Soube, depois, que ele estava tentando salvar a vida de um bebê da UTI, cuja mãe eu conhecia. Mas o bebê não resistiu. Aquilo me deixou calada.
Recebi poucas orientações sobre o pós-operatório e o acompanhamento médico da Sophia. Indicaram uma fórmula alimentícia para a Sophia. Do governo, recebi um telegrama dizendo que Sophia não precisava da fórmula e podia se alimentar com comida caseira. Fazia a papinha e dava pela sonda. Foram tantas as vezes que a gastro caiu, que aprendi a por no lugar. Na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa não tinha atendimento pediátrico. A única médica era uma clínica-geral. Ela apenas pesava e media a Sophia. Sem um encaminhamento médico, não consegui nenhum tratamento para a Sophia. Reclamei do serviço no programa Alô Mãe, uma central de atendimento telefônico. A pediatra começou a trabalhar no posto de saúde quando Sophia, aos sete meses, tinha movimentos equivalentes a um recém-nascido.
A vida de uma criança com deficiência exige muito, e eu estava nessa batalha sozinha. Abandonei meu emprego e a vida que tinha para cuidar da Sophia. Toda semana, por pelo menos três dias, passava a madrugada no hospital. Primeiro ela teve refluxo. Depois, broncopneumonia. Quando melhorou, passou a ter convulsões seguidas, várias vezes ao dia. Ela gritava e chorava sem parar. Um médico disse que era frescura minha, por ser mãe nova com pouca experiência. Mas eu conheço minha filha, e ela não. Era uma terça-feira e o neurologista só estaria no plantão da sexta-feira. Voltei para casa, arrumei uma mala de viagem e atravessei a cidade em busca de uma resposta. Fui ao hospital onde Sophia tinha sido operada. Depois de alguns testes, os médicos desconfiaram da síndrome de West (uma forma de epilepsia). Desde então, Sophia já usou três tipos de anticonvulsivos. O melhor resultado foi com o último, o mais difícil para conseguir pelo Programa de Medicamentos Excepcionais, conhecido como Alto Custo. Em duas semanas, as convulsões sumiram. Não consegui o remédio. Comprei por três meses. Cada caixa custou cerca de R$ 200. Depois, por alguma razão que não conseguiram explicar, as convulsões cessaram.
Cada pequena conquista é muito comemorada. Há duas semanas dei duas colheradas de suco de melancia para Sophia. Foi o primeiro alimento que ela provou. No dia seguinte, tentei dar um de melão, e ela cuspiu. Minha sobrinha de seis anos viu e me perguntou se fiz o mesmo com ela. Em sua inocência, ela acha que também já fez uma cirurgia para receber comida por uma sonda.
Minha filha faz acompanhamento com nove médicos do SUS em sete locais espalhados pela cidade de São Paulo. Sophia tem prioridade na fila de atendimento, mas essa fila prioritária é gigante. Tudo demora. É cansativo e preocupante. Há pouco ela conseguiu uma vaga para fazer fisioterapia uma vez por semana. Antes ela ficava paralisada. Agora, movimenta-se, ergue os braços, tem mais firmeza no tronco. A próxima batalha é conseguir órteses para os pés dela. Como os membros são tortos, ela não tem firmeza para caminhar. Fiz o pedido, mas não sei quanto tempo vai levar para o equipamento chegar. Tem dias que penso que não sou uma boa mãe porque não consigo fazer o melhor por ela.
Ainda não descobri por que a Sophia nasceu assim. Só consegui indicação para um geneticista na semana passada, depois de insistir muito com vários médicos. Preciso fazer um exame. O hospital me disse que, por conta de cortes de orçamento, não poderá fazer. Pedi então à UBS perto de casa, mas não sei se vou conseguir. Não sei quanto minha filha, hoje com um ano e quatro meses, vai progredir nem quanto vai viver. Parei de perguntar porque cansei de opiniões pessimistas. Cada vez que ela fica doente, choro e me pergunto se a hora dela chegou.”
Fonte: Época