Nascido com microcefalia, Davi comemora um ano de desafios

Quando Davi Henrique veio ao mundo, em 2 de agosto de 2015, Mylene Ferreira, 22,  não imaginava que o bebê traria, talvez, o maior desafio de sua vida. Não pela maternidade, afinal ela já era mãe de dois outros filhos. A guinada na rotina da jovem e de sua família, na verdade, foi motivada pelo imensurável desafio nascido com o caçula. Um dia antes do parto de Davi, há exatamente um ano, Pernambuco registrava a primeira notificação de caso de microcefalia no estado do surto que viria a seguir. O filho de Mylene foi o segundo bebê a entrar na estatística.

“Mãe, o seu filho vai ser especial”, disseram-lhe depois do parto. Não era novidade. Durante a gravidez, Mylene teve o filho diagnosticado com síndrome de Down e hidrocefalia, condição em que há acúmulo de líquido dentro do crânio. Erroneamente. A surpresa e o acerto no diagnóstico vieram mesmo quando Davi teve a confirmação de microcefalia, malformação incomum nas unidades de saúde pernambucanas até então.

mco_4927

De acordo com o último boletim da Secretaria Estadual de Saúde (SES), divulgado no último dia 26 de julho, Pernambuco já soma 398 bebês cuja malformação congênita foi confirmada. São 398 famílias cujas realidades foram completamente alteradas com a chegada das crianças. O número é o mais alto desde o início das notificações, mas na época do nascimento de Davi,  por outro lado, as estatísticas ainda eram incipientes, assim como o conhecimento sobre a condição.

continua depois da publicidade

Pouco a pouco, a conexão com o vírus da zika começou a ser estabelecida. Em novembro, a descoberta de DNA viral no líquido amniótico de grávidas na Paraíba acendeu a luz de alerta do Ministério da Saúde. Em Pernambuco, onde houve – e ainda há – maior concentração dos casos da malformação, pesquisadores iniciaram estudos para comprovar a ligação ainda em 2015. Na época, a expectativa era a de comprovar a relação entre as duas partes em até seis meses.

“Não se tinha um conhecimento prévio em relação à microcefalia, mas através de protocolos e exames laboratoriais, foi possível afastar outras possíveis causas e consolidar a relação com o zika vírus. É lógico que muitas coisas ainda precisam ser feitas, mas nesse pouco tempo se conseguiu muita coisa”, comemora Ângela Rocha, infectologista pediatra do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, da Universidade de Pernambuco (UPE), uma das unidades de referência para tratar dos casos no Estado.

Rotina intensa de exames começa às 6h e não tem hora para terminar, segundo Mylene (Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press)

Os esforços resultaram, atualmente, em 180 pequenos que tiveram resultado laboratorial positivo para zika, segundo o último boletim da SES. Davi Henrique ainda não recebeu o resultado do exame, mas médicos da Fundação Altino Ventura (FAV), responsáveis pela descoberta da relação entre microcefalia e lesões oculares, constataram que o menino tem lesões na retina provocadas pelo zika vírus.

“A visão dele é baixa e as lesões do zika afetam principalmente o tecido nervoso dos olhos. A diminuição do volume cerebral também faz com que ele tenha uma deficiência visual e de cognição”, explica a oftalmologista Liana Ventura, médica de Davi e participante do estudo que detectou a relação entre as lesões oculares e o vírus transmitido pelo Aedes aegypti.

“O problema não é a condição dele, é ter que viver no hospital. Eu nunca gostei de hospital”, reclama Mylene. Para cuidar da saúde do filho, comprometida pela microcefalia, pelo refluxo e pelos constantes espasmos e convulsões, ela colocou as próprias vontades em segundo plano e, atualmente, visita não só oftalmologistas, mas também pediatras, neuropediatras, fisioterapeutas, cardiologistas. Tudo por Davi.

Mylene Ferreira e Davi Henrique - 1 ano microcefalia (Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press)

Para ir até os especialistas, ela sai de Nova Descoberta, na Zona Norte do Recife, por volta das 6h da manhã, de segunda a quinta. Ao descer as escadarias do morro em que mora, o bebê de quase 12kg vai de um lado do braço e a bolsa com seus pertences e os de Davi, tão pesada quanto o filho, segue do outro. Durante a peregrinação para completar os exames semanais do menino, mal sobra tempo para comer.

“Tem uns lugares em que o atendimento é muito ruim. A UPA, por exemplo, é o pior lugar. Só vou em último caso. O Hospital Oswaldo Cruz também é péssimo de atendimento. Nem todo mundo é preparado para atender”, critica.

Em relação ao cuidado com os pacientes, o HUOC informou, por meio de nota, que é uma unidade de referência no tratamento de doenças infecciosas e suas consequências. O protocolo de atendimento foi utilizado com base para o atendimento em Pernambuco e no Brasil. Ainda no texto, a unidade afirmou que a equipe aplica um tratamento humanizado e sensível a todos os bebês com microcefalia e suas famílias.

Em relação às UPAs, a secretária executiva de Atenção à Saúde de Pernambuco, Cristina Mota, explicou que os profissionais passam por diversas capacitações. “Eles aprendem a como notificar os conduzir os casos desde que instituímos a obrigatoriedade das notificações de possíveis casos de microcefalia”, relata. Ainda segundo a secretária, a empatia na relação entre pacientes e profissionais de saúde também é um aspecto que está sendo trabalhado pela rede de assistência.

Família
Em casa, a realidade de Mylene e Davi é tão difícil quanto nos hospitais. Sem tempo para trabalhar por causa da dedicação integral ao bebê, Mylene recebe um benefício social de um salário mínimo para custear as despesas do filho mais novo. A ajuda ainda vem por meio de leite e fraldas doados pela Aliança das Mães e Famílias Raras (Amar) e do ex-marido, que paga R$ 100 mensais para ajudar o bebê. “Eu vou brigar na Justiça para ele dar uma quantia melhor”, assegura a mãe.

Os outros quatro adultos da casa, desempregados, se viram como podem para ajudar nas despesas. “Meu pai tem curso técnico em soldagem e arrumou um trabalho outro dia. Espero que dê certo”, diz Mylene. A mãe da jovem, técnica em enfermagem, está sem emprego há alguns meses. “Está muito difícil, mas a gente vai dando um jeito”, pontua Maria Elizabeth.

Passando o dia todo nos hospitais com Davi, ela mal tem tempo para dar atenção aos outros dois filhos, Miguel, 4, e Rafael, 2. Sem estudar, os dois meninos passam o dia inteiro em casa. “A gente não conseguiu colocar os dois na escola, mas ano que vem vamos tentar de novo”, conta a avó.

Carinho que a avó Maria Elizabeth e o irmão Miguel demonstram por Davi é imensurável  (Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press)

Agitados como qualquer criança da faixa etária, os irmãos não contêm a felicidade com a chegada da mãe em casa, já no fim da tarde. “Eles entendem que Davi é diferente e sempre perguntam o porquê de Mylene sempre estar levando ele para o médico, mas ainda não sabem o que é”, explica Elizabeth.

A relação da família com Davi já tomou, inclusive, proporções internacionais. No início do ano, um cineasta norte-americano se comoveu com a história e acompanhou a gravou a rotina da família para exibir num documentário sobre microcefalia. “Ele deve voltar aqui no Brasil em setembro ou outubro, para o batizado de Davi. Vai ser padrinho”, revela Mylene.

Apesar da árdua rotina, o amor da família por Davi é inquestionável. Miguel, o filho mais velho de Mylene, é o primeiro a deixar claro o amor pelo caçula. “Meu irmão é especial porque a cabeça dele balança muito”, diz, tentando explicar a condição de Davi com a pureza e ingenuidade típicas de uma criança. O carinho pelo mais novo, demonstrado através de beijos e abraços, não precisa de explicações. É nítido.

“No início foi chocante, eu demorei a aceitar o que estava acontecendo. Hoje em dia eu já consegui entender mais ou menos e ajudo no que posso”, conta Severino Vicente, avô de Davi. Apesar do jeito sério, o técnico em soldagem se amolece ao falar do neto. “Eu dou cheiro, dou banho… É um amor muito grande que a gente tem por ele”, revela.

Mylene Ferreira e Davi Henrique - 1 ano microcefalia (Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press)

A mãe de Mylene, Maria Elizabeth Ferreira, endossa o discurso do marido e não contém o sorriso na hora de falar do neto. “Ele não fala direito. Não escuta direito. Independentemente disso, ele nos trouxe esperança e união”, relata, encantada.

Para cuidar de bebês como Davi nos próximos anos, o Estado pensa alto. Atualmente, há 24 unidades de referência em Pernambuco e, até o fim de agosto, mais duas devem entrar na lista. Ainda há planos para investir na humanização do atendimento e na capacitação de profissionais para atender àqueles que se tornarão, em breve, crianças, adolescentes e adultos.

Para Mylene e sua família, a ideia é continuar com as idas aos médicos, apesar de o menino não reagir aos estímulos da forma esperada. “Não posso perder a esperança, é o meu filho”, crava. Às vésperas do primeiro aniversário da criança, a mãe pensa em comprar um bolo para a data não passar em branco e tem, além da melhora no quadro clínico de Davi, dois singelos desejos para o filho: muitas felicidades e muitos anos de vida.

Condições financeiras não são as melhores, mas não falta amor na casa de Davi Henrique (Foto: Marlon Costa/Pernambuco Press)

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo