Uma luta travada pela preservação de relíquias da pré-história do Brasil pode, enfim, estar caminhando para um final feliz graças aos esforços de uma arqueóloga de 83 anos.
Dona de uma história que se confunde com o do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, Niède Guidon batalha há quase 40 anos para manter intactos os mais importantes registros da saga dos primeiros homens a pisarem no atual território nacional, há mais de 20 mil anos.
No fim de fevereiro, o juiz federal Pablo Baldivieso determinou provisoriamente que a União, Ibama e Iphan (instituto responsável pelo patrimônio histórico) repassem R$ 4,49 milhões para a manutenção e conservação do parque, e deu um prazo de um ano para que o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela administração, elabore um plano de manejo. Para o magistrado, houve omissão dos órgãos em relação ao espaço.
Segundo o Iphan, que diz ter o menor orçamento das três entidades, a decisão não estipula o valor que deve ser pago por cada uma e ignora o fato de que a petição inicial, da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Piauí, pede que o dinheiro saia da Câmara de Compensação Ambiental federal. O órgão vai recorrer.
Se as medidas realmente forem tomadas –a sentença prevê uma multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento–, será possível vencer o atual momento crítico vivido pelo espaço, avalia Niède, para logo alertar que esse dinheiro, sozinho, não é o suficiente: “Não sei por quanto tempo aguentaríamos”, diz ela em conversa com a BBC Brasil. “Precisamos de uma verba regular de R$ 400 mil por mês para manter o parque.”
HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS
A luta por mais recursos para manter o parque e enfim conseguir transformar a isolada e empobrecida região do município de São Francisco Nonato em um polo turístico soma-se às dezenas de outras que a arqueóloga tem assumido praticamente sozinha nas últimas quatro décadas.
“Eu vim morar no sertão para não deixar essa riqueza se perder e poder ajudar a tirar essas pessoas da miséria”, disse, 11 anos atrás, ao receber o prêmio Prince Claus, da Holanda, quando previu: “Minha luta está longe do fim”.
Niède Guidon nasceu em Jaú, no interior de São Paulo. Integrante de uma família de classe média alta de ascendência francesa, formou-se em História Natural pela USP e, aos 28 anos, foi estudar arqueologia na Universidade de Paris-Sorbonne, onde fez doutorado.
Ela chegou ao retornar para o Brasil mas, por causa de sua militância política, voltou à França após o golpe militar de 1964. Lá, criou uma sólida carreira como arqueóloga.
Sua história começou a se confundir com a do sertão piauiense no início da década de 1970, quando Niède deu início, acompanhada por um grupo de colegas franceses e brasileiros, a uma série de expedições arqueológicas a São Raimundo Nonato. Acabou se encantando profundamente com os tesouros naturais e culturais que encontrou.
Foi por iniciativa dela que, em 1978, o governo brasileiro criou o Parque Nacional da Serra da Capivara. E também foi por meio da paulista que as descobertas no sítio arqueológico do Piauí ganharam destaque internacional, em 1986, ao serem publicadas na prestigiada revista científica britânica Nature.
O estudo provocou controvérsia ao sustentar o achado de artefatos humanos de mais de 30 mil anos. Até então, a data mais aceita para o início da presença do homem nas Américas era bem mais recente. Mas, a despeito dessa polêmica, a arqueóloga conseguiu estabelecer que a área havia sido ocupada por paleoíndios e caçadores-coletores antes do que se imaginava.
Cedida pelo governo francês, Niède se mudou definitivamente para São Raimundo Nonato em 1991 para administrar o parque, que acabara de ser declarado Patrimônio Cultural da Unesco. De lá para cá, fez centenas de descobertas e criou o Museu do Homem Americano.
Ela também apoiou diversas iniciativas para a criação de centros comunitários e foi uma das vozes mais ativas na tentativa de transformar a região em polo turístico, com a construção de hotéis e um aeroporto internacional para viabilizar não só o parque, mas as comunidades carentes locais.
“A região tem tudo para atrair milhares de turistas, menos um aeroporto e um hotel”, diz ela. “Hoje, recebemos apenas de 25 mil a 30 mil pessoas por ano. É muito pouco.”
De Petrolina, onde há um aeroporto com ligação para Brasília, Recife e São Paulo, são 350 quilômetros de carro até São Raimundo Nonato. Quando chove, a estrada fica muito ruim, tornando a viagem ainda mais longa.
“A maioria dos turistas estrangeiros que se interessa por esse tipo de atração é de pessoas mais idosas, o que torna tudo ainda mais complicado”, explica a arqueóloga. Um aeroporto local, previsto para ser inaugurado em 1997, só foi aberto no ano passado, mas ainda funciona de forma inconstante.
UM TESOURO AMEAÇADO
Com uma área total de 130 mil hectares, a Serra da Capivara abriga mais de 900 sítios arqueológicos, 500 deles com pinturas rupestres. Trata-se de um verdadeiro museu a céu aberto. São mais de 30 mil pinturas que revelam o cotidiano daqueles que podem ser considerados os primeiros brasileiros. As imagens mostram cenas de caça, de dança e de diferentes animais, entre tantos outros símbolos ainda não inteiramente decifrados.
“Essas pinturas foram feitas por homens pré-históricos que viveram aqui durante milênios. Algumas delas são datadas de 28 mil anos”, afirma Niède, ao explicar a importância da preservação do patrimônio. “São representações do cotidiano dessas pessoas, embora muitas coisas não saibamos explicar. Em todo caso, é a maior concentração de pinturas rupestres das Américas. E isso tudo em meio a paisagens maravilhosas.”
Já foram descobertos esqueletos humanos datados em 10 mil anos e fósseis de animais há muito tempo extintos, como tigres-de-dentes-de-sabre, preguiças-gigantes e mastodontes, além de cerâmicas e artefatos de uso cotidiano de nossos antepassados. Por conta das descobertas feitas ali, foi possível traçar novas rotas para a ocupação humana das Américas.
Mas, a despeito de tamanha riqueza, o parque vive em graves dificuldades financeiras. Desde o ano passado, conta a arqueóloga, o espaço não vem recebendo os repasses. Só no último mês, teve de demitir mais 27 funcionários. Das 240 pessoas que um dia trabalhavam ali, apenas 40 permanecem.
“Para se ter uma ideia, em todo o entorno do parque existem 28 guaritas, uma a cada dez quilômetros”, explica a arqueóloga. “Hoje, apenas seis estão funcionando. Com as guaritas vazias, houve invasões e depredações. Portas e janelas (das sedes) foram arrombadas; janelas, vasos sanitários, fogões foram arrancados.”
O parque tinha quatro carros e quatro equipes que circulavam para fazer a manutenção –tirar árvores derrubadas do caminho, limpar as estradas. Hoje há apenas um veículo e quatro homens para executar o mesmo trabalho.
Para piorar, falta dinheiro até para o combustível. Sempre que pode, a própria Niède percorre o terreno na camionete, munida de facões e machados, para ajudar os poucos funcionários na tarefa. Ela abre trilhas obstruídas, afasta intrusos e verifica pessoalmente o estado das pinturas.
Por causa de sua luta, a arqueóloga já recebeu ameaças de morte, sobretudo por parte de caçadores que insistem em invadir o perímetro do parque.
PERSISTÊNCIA
A preservação das pinturas rupestres é um desafio à parte em meio à grave crise financeira. Enquanto na gruta francesa de Lascaux, famosa por suas pinturas rupestres de quase 20 mil anos atrás, uma réplica foi feita a 200 metros das originais para que o fluxo de visitantes não danificasse os desenhos, na Serra da Capivara as inscrições pré-históricas estão entregues a sua própria sorte.
“Tínhamos uma equipe de cerca de 15 pessoas dedicadas somente à manutenção dos sítios”, explica Niède. “Os cupins e as abelhas muitas vezes fazem suas casas nas áreas das pinturas, então é preciso sempre limpar. A chuva também traz problemas, infiltrações. Tudo isso era cuidado regularmente por essa equipe, mas ela também teve que ser desmantelada por falta de verbas. Não tem mais nem um carro para isso”, lamenta.
Embora surpreenda a muitos, a dedicação de uma vida inteira à Serra da Capivara, em meio a tantos desafios, é fácil de explicar –pelo menos para ela. “Eu sou uma arqueóloga”, diz, com seu jeito pragmático. “Conheço sítios no mundo inteiro. Sei muito bem a importância do que temos aqui.”